A Ferrovia no Ribatejo: rumo à Variante de Santarém e mais além
Como juntar o útil ao agradável? Esboços de um Plano Ferroviário Regional
A ferrovia no Ribatejo resume-se a duas infraestruturas, a Linha do Norte e a Linha de Vendas Novas, esta última sem serviço de passageiros. Serão certamente poucas as regiões que contem com uma linha de altas prestações em via dupla eletrificada, contudo, a Linha do Norte tem problemas na zona de Santarém que desde o virar do milénio motivam o poder local a reivindicar um novo traçado. Já a Linha de Vendas Novas merece o estudo de como viabilizar o serviço de passageiros em zonas como Coruche e Marinhais.
A Variante de Santarém
O projeto para a Variante de Santarém nasce da confluência das preocupações urbanísticas da Câmara Municipal e das preocupações da REFER (gestora de infraestrutura, hoje IP) e do Governo relativamente à sua funcionalidade. Há hoje planos para construir um ascensor que ligue a estação ao topo do planalto, melhorando a centralidade da estação, mas sem resolver outros aspetos.
A nível local, a linha atravessa a Ribeira de Santarém, um bairro degradado em larga medida devido ao efeito barreira da via férrea - a linha restringe a circulação pedonal e gera poluição sonora. É, tragicamente, uma zona com atropelamentos acima da média.
Ao nível do desempenho da linha como um todo, o troço Vale de Santarém-Santarém conta com curvas mais apertadas, atravessamentos pedonais e riscos geológicos. Resultam patamares de velocidade dos 140 km/h para baixo, contrastando com os 220 km/h na direção de Lisboa e 160 km/h no troço Santarém-Entroncamento. A velocidade é hoje um problema menor, com o projeto da Linha de Alta Velocidade Porto-Lisboa em andamento - contudo, homogeneizá-la permitiria grandes ganhos no serviço de longo curso a Santarém e a cidades como Abrantes, Castelo Branco, Tomar e Pombal.
As encostas instáveis trazem um perigo de deslize de terras que em período de cheias levam frequentemente a restrições de circulação na linha. O perigo não é apenas pluvial - um sismo poderá revelar-se catastrófico, dado o terreno sedimentoso da frente ribeirinha, suscetível a liquefação num terramoto. Também o risco de incêndio se faz sentir no troço.
Mapa com as velocidades máximas na Linha do Norte em Santarém. Fonte: openrailwaymap.org
O projeto da REFER
A solução proposta pela REFER para estes problemas foi um desvio da linha pelo lado poente, num traçado afastado do rio e com encostas mais suaves. Foi projetada uma velocidade máxima de 250 km/h e uma estação que, embora mais afastada do centro em linha reta, teria melhor integração na rede viária e localizar-se-ia numa zona com potencial para construção nova. A austeridade virou a página e encerrou o capítulo. Hoje, o projeto da nova linha Lisboa-Porto retira urgência ao aumento de velocidades na Linha do Norte, mas persistem os demais problemas.
Esboço (com duas alternativas) do traçado proposto da Variante de Santarém. Fonte: REFER (2008), “Estudo prévio da Modernização da Linha do Norte, Subtroço 1.3 - Setil-Entroncamento”. Versão adaptada (traçados destacados a amarelo para melhor legibilidade).
Variante Nascente:
Recentemente, uma proposta cidadã para um curto desvio em viaduto pela margem do Tejo tem merecido apoio considerável na cidade. Resolve o problema da Ribeira de Santarém e permite velocidades mais homogéneas por uma fração do custo do projeto original:
Fotograma do vídeo de apresentação da proposta: mapa do traçado.
Contudo, deixa outros problemas por resolver - não afasta o perigo de derrocada e afasta a estação da cidade. Em termos de vulnerabilidade sísmica, com um viaduto bem concebido, a via poderá ser mais resistente do que a atual, mas a construção em plena planície de aluvião e leito de rio arrisca neutralizar quaisquer ganhos. Em termos de impacte ambiental é um salto frigideira-lume - não bastando a construção em zonas sensíveis, o viaduto descarrega a poluição sonora para o Tejo. A passagem sob a Ponte Dom Luís I condiciona a potencial redução de risco hidrológico. Conta ainda com a agravante de uma estação mais distante física- e temporalmente da cidade. A cereja no topo do bacalhau é o plano para o canal ferroviário desativado: um passeio ciclopedonal (aqui tudo bem) e uma nova estrada que promete redobrar o ruído e poluição em plena frente ribeirinha.
Fotograma: representação da estrada e passeio pelo canal desativado.
Proposta: Estação em São Domingos e túnel pela cidade
A minha proposta nasce das insuficiências das propostas existentes: avanço uma solução estação mais central, menores barreiras visuais e à circulação, melhor resistência sísmica e com menores externalidades durante a construção:
Mapa: Variante de Santarém (vermelho), ligação Vale de Santarém- Santarém.
A proposta consiste num desvio em viaduto de Vale de Santarém até à zona de São Domingos, onde se situaria a nova estação a cerca de 30 m de elevação - trata-se de uma zona de construção nova e densa, próxima do Hospital de Santarém e da CUF Santarém, bem inserida na rede viária e integrada na malha urbana da zona sul cidade. Da estação nova, a linha segue em túnel até entroncar na linha existente no sentido Vale de Figueira. O túnel, apesar dos custos de construção, permite um traçado mais direto e com menos barreiras diante os olhos e a circulação do povo. Oferece também à linha uma melhor resistência a sismos. Abaixo, o diagrama da variante:
A bifurcação antes da estação de Vale de Santarém serve os objetivos de: 1.) permitir a eventual quadruplicação da Linha do Norte no troço Azambuja-Santarém, 2.) aumentar os patamares de velocidade para comboios rápidos, 3.) evitar a encosta e 4.) permitir maiores frequências em serviços com paragens na estação; tudo isto sem ter de reconfigurar ou relocalizar a estação.
Tabela de comparação
Tendo em conta o que disponho acima, concebi uma pequena tabela de comparação com os pontos fortes e fracos das três opções. Não sou nem engenheiro, nem geólogo, nem economista; assumo plenamente o cariz enviesado da figura:
Via férrea desativada
Para além do novo traçado, coloca-se a questão do futuro do canal a desativar, que inevitavelmente merece o estudo de soluções de transporte urbano coletivo em sítio próprio.
Para além de melhorar a oferta de transportes, um tal projeto ajuda a reabilitar da frente ribeirinha (seja pela mão pública ou mais pela mão privada), a ordenar zonas zonas de construção nova. Deverá sempre ligar a estação velha (evitando o abandono do património ferroviário) à estação nova, desempenhando uma função vertebrante da mobilidade urbana.
Mapa: linha de ferrovia ligeira de superfície, aproveitando o canal desativado pela construção da variante.
Não escondo o meu viés ferroviário e avanço já que a melhor solução será uma linha ferroviária com veículos articulados à semelhança dos Siemens e CAF fabricados para a Carris. Contudo, justifico-o com todo o gosto, com os argumentos seguintes:
É uma solução mais fiel ao património ferroviário do que as rodoviárias
Maior facilidade em eletrificar, sem necessidade de estações de carregamento
Pode circular sobre superfície permeável, diminuindo os riscos de inundação a jusante
Transporte mais atrativo e com maior capacidade
Desempenha melhor a função de intermédio entre os autocarros urbanos e a Linha do Norte
Valoriza as zonas servidas aos olhos de potenciais moradores
Menor custo de manutenção
Impacte ambiental: mais silencioso - não apenas pela eletrificação, mas pela baixa fricção entre a roda e o carril; não emite partículas nocivas como o desgaste dos pneus
Veículos mais estreitos guiados por infraestrutura fixa, permitindo a coexistência de duas vias num canal com uma largura abaixo dos 5 metros
Estações terminais com menor área de superfície graças à utilização de veículos bidirecionais.
O calcanhar de Aquiles de uma opção ferroviária está no relevo. A subida da frente ribeirinha até ao Retail Park, rumo à estação nova, implica pelo menos um dos seguintes compromissos para vencer o declive: subidas íngremes, traçado sinuoso, segmentos em túnel ou em trincheira. Resulta necessariamente um equilíbrio desafiante entre a contenção dos custo e o desempenho da infraestrutura. É aqui que as soluções de autocarros em via dedicada têm a sua verdadeira vantagem competitiva: a aderência dos pneus ao asfalto que lhes permite vencer maiores inclinações sem grandes compromissos (quer funcionais quer financeiros). Contudo, o relevo do parque de retalho rumo à estação em São Domingos é mais suave. Desta forma, a linha acompanharia o traçado da Circular Urbana, podendo prolongar-se ao Hospital Distrital de Santarém ou até mais a norte, num futuro ainda distante. Um sistema de autocarros em via própria tem a vantagem de chegar facilmente ao centro histórico - já a força da via férrea é que esta cria centralidades.
Subida ao Retail Park e ao CNEMA rumo à estação nova. Criado no Google Earth.
Há também que relativizar o problema das pendentes pelo lado dos veículos: a cidade de Linz conta com elétricos articulados que todos os dias vencem pendentes de 11,6%:
Fotografia de um Bombardier Mountainrunner da Pöstlingbergbahn em Linz. Imagem da Wikipédia.
Ainda sobre a questão das encostas instáveis, a circulação de um único tipo de veículo rodo- ou ferroviário em canal dedicado, mais estreito e baixo do que os que circulam atualmente pela Linha do Norte, facilita a construção de coberturas parciais de segurança sobre a via.
O futuro da Estação de Santarém
Fachada da estação (fonte).
Não seria destino indigno que a atual Estação de Santarém sobrevivesse como terminal de elétricos. Ironicamente, esta nova vocação aumenta a viabilidade da manutenção do serviço de ferrovia pesada à estação. Numa primeira fase poderá funcionar como terminal de serviços regionais vindos de Tomar e Abrantes, por exemplo. Mas talvez o melhor seja mesmo integrá-la num novo corredor ferroviário, um novo acesso da Linha de Vendas Novas à Linha do Norte no sentido Entroncamento.
Uma Linha do Ribatejo?
Diagrama representando a Variante de Santarém com estação em São Domingos, a linha de elétricos pelo canal desativado e uma nova linha desde Muge via Almeirim.
Amarelo - ferrovia convencional. Vermelho - vias rápidas da Linha do Norte. Azul - ferrovia ligeira de superfície. Preto - ferrovia desativada.
O Triângulo do Setil, onde a Linha de Vendas Novas se bifurca nos sentidos Entroncamento e Lisboa, é um ponto que deve ser melhorado. Na sua configuração atual, obriga os comboios no sentido Vendas Novas-Entroncamento e Lisboa-Vendas Novas a fazer uma pequena parte do seu trajeto na Linha do Norte em contravia, o que condiciona a capacidade das duas linhas. Para além da sua configuração, apresenta raios de curva apertados, resultando velocidades máximas de 30 km/h. Para o transporte ferroviário de mercadorias, que é menos sensível ao tempo de viagem, a velocidade em si não é um problema tão marcante para o serviço de passageiros. Ainda assim, desacelerar um comboio de milhares de toneladas desde os 90 km/h e voltar a acelerar é extremamente ineficiente.
Estes constrangimentos de capacidade e velocidade reduzem fortemente a viabilidade de um serviço de passageiros na Linha de Vendas Novas com destino a Lisboa ou Santarém. Um bom primeiro passo seria refazer o triângulo com raios de curvas maiores e inserções que não obriguem a circular em contravia.
A ponte Chelas-Barreiro (TTT, Terceira Travessia do Tejo), quando construída, permitirá serviços Lisboa-Barreiro-Pinhal Novo-Bombel-Coruche sem ocupar nenhum canal horário da Linha do Norte. Já para um serviço de passageiros Coruche - Santarém, não se encontra programado nenhum investimento com semelhante efeito.
Uma linha nova partindo de Muge ou Marinhais via Benfica do Ribatejo e Almeirim seria profundamente transformadora para o transporte na região tanto de pessoas como de mercadorias. A faixa da margem esquerda do Tejo de Samora Correia até Almeirim concentra núcleos de população considerável, onde se verifica não só atividade agrícola como, crescentemente, indústrias, logística e turismo. Porém, conta com uma oferta de transporte coletivo sofrível, fator agravante da dispersão e insuficiência de serviços. A natureza linear desta faixa urbana facilita em muito a implementação de um bom sistema de transportes. Resulta que o segmento Muge-Almeirim seja o corredor ideal para um novo acesso da LVN a Santarém. O crescimento da atividade logística e Almeirim pode justificar um terminal rodoferroviário de mercadorias. E como deve a nova linha entrar em Santarém? Atravessando o rio a montante da Ponte D. Luís I, seguindo pela estação velha.
Esta linha permite retirar grande parte do tráfego de mercadorias Sines-Entroncamento do troço Setil-Santarém, o que, para além de um caminho mais rápido e direto para os contentores, um grande alívio de capacidade na Linha do Norte.
Caso o novo aeroporto de Lisboa seja construído no Campo de Tiro de Alcochete, vai inevitavelmente fazer crescer a zona logística e industrial de Benavente (perto do nó da A13 com a A10). O crescimento desta plataforma logística poderá justificar um ramal ferroviário desde Marinhais ou Muge. Se for construído o troço Carregado-Aeroporto da LAV Porto-Lisboa, da qual consta um troço entre Benavente e Samora Correia, será possível ter serviços diretos Santarém-Aeroporto sem passar por Lisboa. Se o novo aeroporto for em Vendas Novas, toda a intervenção que melhore as condições para serviço de passageiros na Linha de Vendas Novas terão interesse acrescido.
Sublinho o muito-falado conceito da “Cidade Aeroportuária”, dificilmente um aeroporto será viável se não estiver devidamente articulado com as cidades e vilas nas suas imediações. O caminho de ferro é um instrumento imprescindível para conseguir a tal Cidade. Já Santárem, aeroportuária ou não, pode contar com uma extensa rede de transporte ferroviário graças às intervenções que aqui defendo.